Apaixonada por
atletismo ela treina 300 pessoas em local pobre de São Paulo, realiza sonho do
filho assassinado e vê projeto ser premiado fora do país
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7 de setembro
de 2000. O jovem Marcos dos Santos Silva, aos 21 anos, é assassinado durante
assalto cometido por um adolescente. O fato mudaria não somente a realidade de
sua família, mas de toda uma comunidade: a partir daquele dia, o bairro do
Capão Redondo, na região sudoeste de São Paulo, seria apresentado ao Vida
Corrida. O projeto social é comandado por sua mãe, Marineide, já foi premiado
fora do país, engloba 300 pessoas e cresceu a partir do sonho de seu filho
perdido.
Natural de
Porto Seguro, na Bahia, a decoradora de interiores Marineide dos Santos Silva
sempre gostou de esportes. Desde a infância, as aulas de educação física
representaram o momento em que ela extravasava o jeito tímido e calado, mas
“elétrico”. Durante um campeonato colegial, uma das garotas que disputaria o
revezamento 4x100m faltou, e Neide, que era atleta do handebol, foi a
substituta. Ali começava uma relação íntima e inabalável com o esporte. “Amor à
primeira vista”, como define a popular Neide Santos.
Neide Santos: animação total durante as corridas
de rua
Foto: Divulgação/Vida Corrida)
Estabelecida no
Capão Redondo há 43 anos, Neide iniciou o projeto Vida Corrida em 1999. Seis
mulheres da comunidade pediram que ela as orientasse em suas atividades
físicas, e a decoradora-atleta aceitou prontamente, utilizando o Parque Santo
Dias como centro de treinamento. Os equipamentos, como colchonetes e halteres,
eram construídos ou adaptados pelas próprias corredoras. Um mês depois, o
projeto já contava com 30 mulheres.
O grupo era
restrito ao sexo feminino. A intenção de Neide era preparar as alunas para
correrem a São Silvestre, mas havia um apelo para que as crianças também
participassem. O filho Marcos era um dos maiores incentivadores da ideia, mas o
tempo restrito da professora impossibilitava a chegada de novos membros. O
assassinato do rapaz, no entanto, mudou sua vida e sua maneira de pensar.
"Foi difícil
continuar meu trabalho. Fiquei afastada por dois meses. Era muito difícil
encarar tudo, as pessoas com quem eu convivia. Perder meu filho foi cruel
demais. Fiquei pensando em tudo o que ele me disse e decidi fazer um teste.
Queria mudar a vida das crianças da comunidade. Acho que consegui" - afirmou,
em entrevista ao Globo Esporte.
20 anos
antes, Neide havia passado por episódio semelhante: o primeiro marido, Edson
Pereira, suspeito de um assalto, não obedeceu à voz de comando de um policial
militar e acabou morto pelo oficial. A história até hoje intriga a líder do
Vida Corrida, que atualmente está divorciada. As dificuldades para fundar o
projeto não passaram somente por problemas pessoais, mas também pelos mais
diversos tipos de preconceito.
"No começo, eu
era a única que treinava na comunidade e recebia muitas críticas. Alguns me
perguntavam por que eu usava shorts são curtos, outros diziam que eu deveria
cuidar do meu marido, pilotando fogão, tanque de lavar roupas... Eu era tratada
como vagabunda. Mas minha vida continuou e hoje o projeto social é um orgulho" -
contou.
Anteriormente
conhecida por altos índices de violência, a região do Capão Redondo, uma das
mais populosas da cidade de São Paulo, vem ganhando destaque pelo número de
opções culturais proporcionadas pelo trabalho de ONGs e associações, que
fizeram a média de homicídios cair. Ainda assim, os problemas continuam: em
pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
no ano passado, o Capão obteve índice de 47,12 óbitos por homicídio de jovens
do sexo masculino (de 15 a 29 anos) – a média da capital paulista é de 26,52.
Parque Santo Dias: reduto do projeto em São
Paulo, repleto de crianças
(Foto: Divulgação/Vida Corrida)
A rotina de
Neide Santos é de corrida, em todos os sentidos. Embora continue exercendo a
profissão de decoradora de interiores, em parceria com duas arquitetas, ela
hoje trabalha em tempo reduzido, dedicando a maior parte de seu dia aos alunos.
Utilizar o projeto como forma de renda, porém, está completamente fora de
cogitação. Os ideais que consolidaram o grupo em seu início se mantêm intactos.
"Hoje sou
freelancer, ganho apenas pelos trabalhos que executo, mas acabo faltando
bastante. Do mesmo jeito, nunca quero viver financeiramente do Vida Corrida. Se
eu aceitasse qualquer coisa nesse sentido, iria contra tudo pelo que ele surgiu
e pelo que existe hoje. Não seria mais o projeto social que eu criei. Nenhuma
criança pagará nada para treinar, nunca" - assegurou.
Deixar o bairro
do Capão Redondo também não é uma alternativa. Radicada em São Paulo desde
1967, Neide, que vai completar 52 anos no próximo dia 10 de novembro, admitiu
que às vezes se assusta com os altos índices de violência e com presença
constante da comunidade nos setores policiais do noticiário. Ainda assim,
prefere se empenhar na luta por um local melhor em vez de transferir o projeto
para ponto da capital. O elo com os habitantes é grande e ressaltado diversas
vezes pela professora.
"Sem demagogia,
eu já tive várias oportunidades de sair daqui. Mas não quero. O Capão é meu
canto, aqui que eu tenho de ficar. Minha missão é aqui. Não mudaria por nada
nesse mundo, nem se fosse para morar no Morumbi. Não tem nada a ver comigo.
Mesmo se ganhasse na loteria, continuaria ajudando as pessoas e ampliando o
projeto. Meu último suspiro tem de ser aqui."
Com mais de 300
participantes, o grupo hoje engloba atletas de quatro a oitenta anos. Através
da Associação Projeto Vida Corrida, Neide Santos realiza palestras
motivacionais, treinamentos e luta pelo aumento constante da responsabilidade
social em São Paulo. Já foram realizadas campanhas de doação de sangue e
alimentos, além da fundação de uma biblioteca, acessível à toda a comunidade.
Neide, em seminário durante o World Bike Tour,
em Portugal
(Foto: Divulgação/Vida Corrida)
O
reconhecimento veio de diversas formas: em 2009, a idealizadora do projeto o
inscreveu em um concurso promovido pela marca esportiva Nike, cujo tema era
“mulheres virando o jogo no esporte”. O Vida Corrida concorreu com ideias
capitaneadas por figuras como as ex-jogadoras de voleibol e basquete,
respectivamente, Ana Moser e “Magic Paula”. Venceu, e a marca norte-americana
tornou-se patrocinadora, colaborando com equipamentos.
Neste ano, o
projeto foi eleito a melhor ação social do estado de São Paulo, na 10ª edição
do Prêmio Anu, que contempla trabalhos de instituições, fundações, empresas,
indivíduos e ONGs. Ganhou também outro concurso, promovido em mais de 60 países pela marca americana Gamechangers, que viabilizará a construção de uma
sede voltada aos atletas e aos trabalhos sociais da associação.
Mãe de Lidia, de 28 anos, e Marcelo, de 30,
Neide não limita sua família ao espaço do pequeno apartamento em que vive na
Cohab (Companhia de Habitação Popular). O Parque Santo Dias e todos seus
frequentadores diários, que
chamam a fundadora do projeto de "Anjo", tornam a diretora da
associação uma "segunda mãe" no local.
"Imagina
quando tivermos um teto, o barulho que vamos fazer? Sou suspeita para falar,
mas conheço inúmeros projetos, e o Vida Corrida é único. Essa comunidade se
tornou minha família. Eu teria inúmeros motivos para sair daqui, mas tenho uma
arma mais forte que qualquer outra: o dom do perdão. Pelo menos um grão de
areia eu estou mudando nesse mundo" - afirmou.
Barulho,
solidariedade, união... No coração do Capão Redondo, o grão de areia do Vida
Corrida se multiplica a cada dia.
Capão no peito: Neide sempre representa a
comunidade
(Foto: Divulgação/Vida Corrida)